Monografia não é petição inicial, e isto também serve para dissertações de mestrado e teses de doutorado. Com freqüência, os estudantes de direito, independente de qual nível estejam, tendem a reproduzir um vício compartilhado pelos seus professores que, por sua vez, reproduzem um vício compartilhado por seus antigos professores: a ideia de que a produção acadêmica tem que se assemelhar a uma petição inicial!
Não é difícil observar orientadores e orientandos que, nas salas de aula e nas conversas de orientação, se preocupam muito mais em firmar posição e cristalizar opiniões do que efetivamente conhecer como o direito funciona. Isto é, preocupam-se mais como o direito deveria ser (sob o seu ponto de vista) do que como o direito é efetivamente (a partir dos dados empíricos).
Observe-se que isto tem um motivo: a confusão entre o que é a prática jurídica e o que é o trabalho acadêmico. A prática jurídica – representada por petições, recursos, acordos, contratos, audiências, etc – é orientada pelo dever ser, pelo juízo de valor e pela defesa de posição. O trabalho acadêmico é voltado para a pesquisa empírica, para as conclusões amparadas em métodos, técnicas e dados. As conclusões não podem vir antes da coleta de dados e as hipóteses são sempre passíveis de negação a partir desses dados.
O resultado disso é que o resultado supostamente acadêmico – seja ele uma monografia, dissertação ou tese – pode não passar de uma reprodução do que já existe. Muitos escrevem sobre a (não)aplicabilidade da Lei Maria da Penha para homens ou sobre a (in)constitucionalidade da Lei Seca, mas pouquíssimos produzem dados empíricos que sustentam suas conclusões. Além disso, não é difícil encontrar pessoas que dizem que a pesquisa que realizaram no TCC foi bibliográfica ou que escolhem um tema pela defesa que querem fazer dele.
Assim, a conclusão vem antes do texto efetivamente nascer. A mímica torna-se mais importante do que a originalidade. A tecnologia do “ctrl+c” e “crtl+v” passa a ser amplamente mais usada do que a razão e o método. Como efeito, a curiosidade, a dúvida e a vontade de conhecer como as coisas são – características típicas dos cientistas – podem dar lugar ao “achismo” e à reprodução ingênua – características típicas dos reprodutores de ideias.
Porém, vale dizer que os reprodutores não são reprodutores porque são preguiçosos. Isto ocorre de maneira consciente, mas, principalmente, inconsciente. A reprodução ainda pode ocorrer tanto no orientador quanto no orientando e ambos se portar como meros “ecos” do que está na lei, nos livros e nas decisões. Alguns, inclusive, muitos vão até o Código de Hamurabi para falar de agências reguladoras e outros recorrem à legislação suméria para discutir a lei da ficha limpa.
O efeito perverso desta reprodução é a separação radical entre produtor das versões do conhecimento e o consumidor das versões do conhecimento. Nem um nem outro necessariamente tem suas conclusões ancoradas no conhecimento científico, especialmente porque não necessariamente realizaram uma pesquisa científica.
O produtor das versões do conhecimento (e não do conhecimento) é aquele que escreve o texto de uma maneira meramente opinística e, com seus juízos de valor, vai moldando o que é justo, injusto, certo, errado, legal, ilegal, isto é, vai imprimindo a sua versão sobre um determinado assunto. O produtor possui toda uma carga simbólica que reforça uma relativa autoridade a respeito do que ele escreve e defende. No direito, esta autoridade passa a ser concebida pelos diversos profissionais de maneira bastante ingênua e, inclusive, com uma perspectiva pouco crítica. Não é por acaso que é chamado de “doutrinador”, e não de “autor”.
O consumidor das versões do conhecimento, por sua vez, é aquele que tem o produtor como objeto de desejo, como um ser iluminado. Caso não tenha escrito livro, o endeusado também pode ser um legislador ou um julgador, mas será livre de qualquer crítica que não seja a mera divergência de opinião a partir de artifícios como a “intenção do legislador” ou “o espírito da decisão”. Os interesses e valores do produtor não são relevantes para o consumidor. Como dizia Marx, toda mercadoria tem um fetiche, e este fetiche no direito pode vir acompanhado de adjetivos como “ilustre doutrinador”, “festejado jurista”, “eminente julgador” e “egrégio tribunal”.
O fato é que, para fazer um trabalho acadêmico, o primeiro passo é reconhecer que ele não pode se submeter à mesma lógica da prática forense. Até que me convençam do contrário, não considero possível conceber uma tese de doutorado sobre a inconstitucionalidade dos embargos infringentes ou uma dissertação de mestrado sobre o princípio da presunção da inocência no Brasil, China, Afeganistão e Ilhas Fiji. O trabalho acadêmico requer pesquisa, curiosidade, rigor, metodologia e, principalmente, a procura incessante por dados e informações que suportem ou não as hipóteses de maneira objetiva e científica.
O segundo passo talvez seja mais ousado. Ele requer o rompimento do paradigma de que o conhecimento se produz pela seqüência: a) introdução; b) evolução histórica; c) conceitos; d) fontes do direito; e) princípios; f) questões legais e jurisprudenciais; g) conclusão. O direito não funciona por literalidades e linearidades. A reprodução desta seqüência em monografias, dissertações e teses só contribui para o enfraquecimento do conhecimento científico. O fato é que, assim como ocorre com os fumantes, o uso do cachimbo entorta a boca!
Publicado em ConJur – (19/01/14)
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